Um muro duas vidas

UM MURO DUAS VIDAS

O coração de adolescente bateu forte enquanto desfilava ao som dos aplausos do público, era a mesma emoção que sentira pela manhã ao chegar de Berlim e ver as montanhas cobertas de neve. A sensação de esperança ficou mais forte, juntou-se ao desejo de levar uma medalha para provar ao seu pai que era capaz. Enfrentaria grandes nomes da patinação artística individual no gelo de Garmisch-Partenkirchen. Competia pela Alemanha e cada dia seu nome subia mais um degrau na lista das classificadas.
– Sou Tomas Knopf, aceita um café?
Lothe sobressaltou-se ao ver o jovem ao seu lado na pequena lanchonete do estádio, na qual se refugiara depois de escutar as reclamações de sua treinadora por não ter alcançado um ponto a mais do que a atleta austríaca naquela tarde. As emoções confusas que sentia e a improvável aceitação de um relacionamento amistoso entre atletas por parte de dona Loni, incentivaram a insensatez e tal qual uma andorinha ao vento, no despertar de seus quinze anos, ela respondeu:
– Sim, se você aceitar uma torta de maça. Eu me chamo Lothe Reskow.
Uma pergunta e uma resposta que mudaram suas vidas. Durante um ano as cartas trocaram endereços entre Paris e Berlim, as de Lothe ficavam escondidas na gaveta de uma velha escrivaninha do seu quarto, na parede a medalha de ouro emoldurada ao lado da foto de sua mãe que morrera ao dar-lhe a luz.
“A saudade está cada vez mais forte dentro de mim, meu sentimento é puro e bom, queria sentir teu perfume e te ver novamente. Tua falta me sufoca fazendo crescer o meu amor, espero encontrar-te na próxima competição. Conto os dias, desta vez será em Praga, vamos nos divertir e enganar novamente a severa dona Loni. Eu…”.
Lothe parou de ler a carta ao ouvir o som de caminhões, foi até a janela do seu quarto para ver o que era. O movimento dos soldados russos descarregando arame farpado, as ordens em tom alto fizeram com que pensasse que uma nova guerra havia iniciado. Correu para o andar inferior da casa.
– Frau Hansen o que está acontecendo? A senhora viu os caminhões descarregando todo esse material? O que está acontecendo?
– Não sei querida, mas vamos fechar as janelas, quando o exército está em movimento não pode ser boa coisa, seu pai nos conta quando chegar fique calma.
As feridas mal curadas da segunda guerra mundial reabriram entre camadas de arame, pedras, cimento, cães e soldados cortando uma cidade ao meio. Ninguém mais poderia passar de Berlim Oriental a Berlim Ocidental sem uma autorização, quilômetros de muro impedindo parentes, amigos e amores de se encontrar. Nada poderia acontecer sem os olhares severos e a autorização do exército vermelho.
– Pai, mas por quê?
– Outro tipo de guerra minha filha duas linhas de pensamento, sem as armas eles fazem nova guerra só de palavras e artimanhas, mas são pior que espadas.
– Não poderei mais ver a tia Gretel? A vovó Helga? Minha prima Lisa? E…
– Não. – A resposta foi seca e curta. O pai militar não admitiria contestações da própria filha e ela soube, naquele momento, que não teria mais a sua privacidade.
A carta dele veio aberta e amassada naquele mês, a competição fora cancelada por causa de um acidente aéreo, mas queria vê-la. Combinava o dia em que estaria no outro lado do muro, cinco quadras a esquerda do portão de Brandemburgo, numa distância segura da vigilância dos guardas, até às cinco da tarde.
– Max veja é ele. – Falou para o primo que a ajudou a escalar o muro. – Abanou, mas ele não a viu, insistiu até ouvir um guarda gritar e Max falar que era hora de se retirarem antes que os vissem pensariam que estavam tentando fugir, não teriam dó. Afastou-se do muro chorando, nunca mais o veria.
O pai não aguentou a situação morreu depois de quatro meses, por apenas duas quadras os dois ficaram separados da família. Lothe ficou sozinha entre o medo e a coragem não sabia o que fazer além de obedecer e não correr riscos naquela insana realidade, não competiu mais, tornou-se enfermeira. Tomas se tornou treinador de patinação.
Muitas cartas cuidadosamente escritas para obter permissão de ir e vir, fotografias trocadas, caixas de bombons abertas e muitas vezes completamente vazias, um casaco de “cashmere” rosa que ela apenas usou vinte e oito anos depois em novembro, no mesmo local entre pedras caídas e arrames cortados. Foi Tomas que a reconheceu, correu e a envolveu num abraço enquanto o povo festejava derrubando outras partes do muro. Emocionado ele falou:
– Teus olhos azuis estão novamente ao meu alcance.

Verena Rogowski Becker
01/05/2016

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