O SUSTO OU SER JUSTO

O SUSTO OU SER JUSTO

Roberta estava no pequeno apartamento com espaço suficiente para duas jovens universitária. Na cabeça uma toalha enrolava o cabelo molhado. Com a respiração acelerada depois de uma corrida de quatro quilômetros, pensava no trabalho que precisava entregar ao professor de desenho arquitetônico, sabia que, se não estivesse perfeito, sua nota seria baixa.
Na sala cheia de papéis espalhados na mesa, tentava montar o trabalho sobre Igrejas Barrocas. Sozinha e pensativa olhou pela janela as torres da Catedral que se sobrepunham ao ipê roxo e florido. Estava anoitecendo e as cores do céu se modificavam, assim como os contornos das cúpulas, era um cenário inspirador. Respirou fundo e voltou ao trabalho.
Quieta, controlando as medidas do projeto, escutou o celular, mas não deu atenção, continuou desenhando. Depois de um tempo, com a insistência dos bipes, resolveu parar e ler as mensagens. Era a irmã mais nova, queria que se encontrassem para uma noitada regada a vinhos e queijos. Descobrira um local onde teriam que pagar o vinho, mas os queijos seriam gratuitos.
Respondeu que não e decidiu desligar o celular até terminar o trabalho. Depois deitaria na cama quentinha e fofa para se recuperar da semana de intensos estudos. O evento terminaria altas horas da madrugada, não haviam sido convidadas e ela não gostava de entrar em festas dessa forma. Terminou o que precisava, ligou novamente o celular, atirou-se na cama e dormiu profundamente.
O telefone tocou incessantemente. Roberta acordou e olhou para as horas no celular, viu que eram quatro da madrugada, observou ligações do seu pai. Ficou assustada, naquele horário era complicação, principalmente porque moravam há quatrocentos quilômetros de distância, alguma coisa de ruim estava acontecendo.
— Papai? O que houve para me ligar essa hora?
— Sua irmã, filha! — A voz tremia. — Está presa, não sei em que confusão se meteu, só você pode ajudar agora.
O pai de Roberta tinha sessenta anos, sua maior preocupação na vida era com os filhos, pois enviuvara muito cedo e com a filha presa estava desesperado.
— Ela foi numa festa ontem à noite, nada disso teria acontecido se eu tivesse ido com ela, mas estava tão cansada que preferi dormir, tenho um trabalho para entregar nesta segunda-feira, nem notei que ela não havia voltado.
— Filha, pelo que sei ela enfrentou o dono dessa festa, não deve ser tão grave. Sempre falo para vocês cuidarem o que fazem, pois estão em uma cidade grande e tudo é estranho, todo cuidado é pouco, cansei de explicar isso para vocês.
Seu Ricardo sempre cuidara para que as duas filhas e o filho tivessem comportamento impecável, principalmente porque enquanto estudavam, moravam longe dele. O irmão mais velho já se formara e abrira um escritório de engenharia na mesma cidade onde o pai morava. Era sua pretensão terminar o curso de arquitetura e trabalhar com o irmão, já estava tudo combinado, mas Letícia, a mais nova cursava gastronomia, vivia em festas de degustação, não imaginava o que poderia ter acontecido.
— Papai, não se preocupe, vou imediatamente procurar a delegacia onde ela está e retorno a ligação para o senhor, não se preocupe, ela nunca fez uma coisa fora das leis, deve ser um engano. Espere pela minha ligação, mas tome um remédio para se acalmar e chame Luiz para lhe fazer companhia.
Desligou o telefone, vestiu-se, arrumou a documentação na bolsa e viu sobre o sofá da sala a carteira de identidade da irmã. Imediatamente entendeu o motivo dela estar numa delegacia. — Experiência que Leca nunca vai esquecer. — Pensou enquanto colocava a carteira da irmã na sua bolsa. Tentou várias vezes chama-la no celular, mas não obtinha resposta nem nas mensagens de Watts App. Decidiu ir para a primeira Delegacia da Polícia Civil, chamou um Uber, naquela hora não acharia um taxi.
— Algum problema? Pelo endereço vamos para a delegacia? — O motorista foi logo perguntando.
— Sim, um pequeno problema com minha irmã. — Continuava tentando ligar para o número da irmã, quando alguém atendeu.
— Alouuu? — Uma voz masculina.
— Este celular é de minha irmã Letícia, eu a estou procurando, quem é que está ao telefone?
— Aqui é o policial Marquezzz! — A voz era autoritária e novamente espichava o final da última palavra ao falar.
— Senhor Marquez, será que poderia me dizer se minha irmã está nesta delegacia?
— Qual o nome dela senhoraaa? — Mas que droga de policial fica falando como se brincasse comigo, ou será que tem mesmo esse cacoete? — Pensou e foi respondendo educadamente. — Letícia Santos Meireles senhor, ela deve ter se identificado.
— Ela está aqui na segunda Delegacia Policial Civil, quase centrooo, mas não sei se é ela, não tem documentosss.
— Obrigado senhor, já estou indo para aí e levando o documento dela.
O oficial desligou e ela imediatamente falou para o motorista que tinha novo endereço para o qual deveria seguir.
— Não posso.
— O que? Como não pode?
— Só faço o que a central me manda moça, se eu mudar o roteiro, além de correr perigo. Não sei quem você é lidando com a polícia dessa forma, o valor da corrida seria outro e eu sairia perdendo.
— Droga! Então me deixa na primeira mesmo, de lá chamo outro ou você mesmo faz outra corrida se eu telefonar.
Quando desceu do Uber se defrontou com uma multidão gritando e jogando pedras na delegacia, na verdade foi arrastada junto com a multidão e tentava de todas as formas se esquivar, pois, da frente da delegacia, os policiais já estavam jogando gás lacrimogênio e atirando com balas de borracha.
Uma bala acertou-a. Gritou de dor, um rapaz ao seu lado pegou-a pelo braço e, literalmente, a arrastou para fora daquele tumulto. Falou que era um policial disfarçado e que a ajudaria. Inclusive mostrou sua identificação.
— Preciso de um Uber senhor policial, o outro sumiu depois de ver a confusão, tenho que buscar minha irmã na segunda delegacia, não tenho nada a ver com esses manifestantes.
— Eu vi quando você desceu do carro, não se preocupe, vou tentar ajuda-la da melhor forma possível, você é muito bonita.
— Obrigado, minha irmã saiu ontem sem documentos. Aqui estão meus documentos, tirou a carteira e mostrou também o documento da irmã que tirou da bolsa com cuidado.
O policial pegou a carteira, olhou os documentos e telefonou para um Uber. Ficou esperando com ela o carro, enquanto a multidão se espalhava para todos os cantos correndo desordenada.
— Vá até a segunda delegacia, lá está mais calmo. Falou enquanto devolvia a carteira e abria a porta do carro gentilmente.
Roberta entrou aliviada no carro e perguntou ao motorista se ele sabia onde ela queria ir.
— Sim, para a segunda delegacia, o policial Alves comunicou a central, algum problema?
— A não ser sair quase ilesa de uma grande confusão e estar com o braço doendo? Está tudo bem. — Sentia-se segura, tudo daria certo com a ajuda de um policial.
Roberta ficou em silêncio até chegar ao local, quando foi pagar o rapaz, viu que todo dinheiro sumira de sua carteira. Deu um grito de pavor, fora aquele cara com documentos de policial, eram falsos.
— Droga, droga, droga. — Gritou porque se dera conta do perigo. Viu-se numa situação terrível, pois se o guarda lhe roubara, também fora ele a chamar o Uber. Estariam combinados? O que poderia acontecer ainda naquela madrugada? Roberta foi ágil e pulou para fora do carro perguntando se ele aceitaria cartão.
— Sem problemas, vou conectá-la a máquina e poderá pagar, mas tem certeza que não quer pagar em dinheiro?
— Sim! Saí tão rápido que esqueci, por favor, estou com pressa.
O motorista não mostrou reação nenhuma, o que a deixou mais intrigada, só fez o procedimento com uma máquina amarelinha, agradeceu e foi embora.
Respirou aliviada parada na calçada, pensou em como resolveria o problema da irmã.
— Ainda bem que aquele ladrão não levou meus documentos, pois sem eles estaríamos as duas em uma grande enrascada. — Falou encaminhando-se para a porta da delegacia.
Depois de pagar uma multa e liberar a irmã saíram caminhando. Estava amanhecendo, Roberta falou para a Irmã.
— Vamos caminhando, preciso de ar, dois sustos numa madrugada são de lascar.
— Eu também. — Leticia respondeu com certo receio, sabia que a irmã estava chateada com ela e falou: — Não fiz nada de errado, briguei com o dono da festa, amigo do meu amigo, ele chamou-o de mulherzinha, gay e outras coisas por ter nos levado a festa, tu sabes que nós duas não aceitamos essas discriminações. Meu erro foi esquecer meus documentos em casa, nunca me aconteceu antes.
— Minha querida irmã, vamos entrar naquela pequena padaria, tomar um café, ligar para o papai e esquecer esse episódio. De agora em diante você terá que se cuidar e em dobro, pois ficou fichada na delegacia por desordem. Ainda tens três anos na universidade, eu termino meu curso este ano, quem vai cuidar de você?
Tomaram um gostoso café depois de telefonar e acalmar o pai e o irmão. Letícia estava chateada, mas não se sentia culpada, não por defender o amigo. As duas voltaram a caminhar tranquilas, as ruas já estavam ficando movimentadas, a claridade no céu azul, os vendedores ambulantes montando suas barracas, as lojas abrindo, tudo fazia parte de um cenário comum. Pegaram uma lotação.
Roberta pensou sobre como a vida poderia ser simples, se todos fossem bons, sabia que nunca mais poderia confiar plenamente em uma pessoa que dissesse ser policial, mas também em fazer um curso de autodefesa com a irmã, o que possibilitaria que ninguém nunca mais pudesse enganá-la e principalmente asseguraria o bem-estar da irmã quando ela voltasse para sua terra natal.

Verena Rogowski Becker
12/08/2021

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