O PRESENTE CHEGOU COM CINCO ANOS DE ATRASO ... CHICO
A campainha tocou, demorei um pouco para atender, estendia a roupa no varal, depois fui apressada até o portão. Falando com dificuldade, talvez pela idade ou pela emoção, a senhora de pouca estatura e meio gordinha, roupas simples, olhou para um pequeno pacote enrolado num jornal amarrado com uma fita mimosa vermelha.
— A senhora é a professora Marli?
— Sim, sou eu.
Parecia querer entrega-lo, mas o segurava com o carinho de quem não queria se desfazer do pacote. Depois de uns minutos de indecisão perguntei:
— A senhora quer entrar?
— Não, imagina, só vim lhe entregar esse pacote. Foi difícil acha-la.
— Desculpe, é que dou aulas, as vezes trabalho três turnos seguidos, como é seu nome?
— É só um presente.
Entregou o pacote sem responder minha pergunta, como alguém que se livra de uma dor, de um favor inexplicável, de uma promessa não cumprida e saiu sem dizer nenhuma palavra, rapidamente, quase correndo. Como se fugisse de mim ou do próprio pacote que momentos antes segurava com muito carinho.
Entrei em casa devagar, olhando ainda para a rua para ver se ela não voltava para explicar um pouco mais o presente que deixara ou o motivo, o nome de quem mandara ou o nome dela
Agora eu segurava o pequeno pacote da mesma forma que ela, com cuidado e curiosidade. Sentei na sala e coloquei o pacotinho na mesinha do centro, não entendi bem aquela situação.
Eu era impulsiva quando se tratava de presentes, não deixava para abrir depois, sempre apressava a abertura rasgando o papel se o adesivo fosse grudento ou cortando a fita se estivesse muito amarrada.
Mas aquele era diferente, fora entregue de forma especial e principalmente extrapolou a minha curiosidade, cheguei a ficar com medo de abri-lo. Deixei-o, atendi o telefone, mas não o afastei do meu olhar.
Depois que desliguei peguei o pacotinho novamente, desamarrei a fita vermelha e nele havia um cinzeiro feito de argila com o formato de uma pequena mãozinha. Fiquei arrepiada e abri logo o bilhetinho que estava por baixo. Era do Chico.
O Chico era uma pessoinha muito especial quando fui dar aulas no colégio de ensino fundamental. Era da sétima série e por motivos de uma doença genética não crescera como qualquer jovem da sua idade.
Muito querido entre os professores e colegas, era carregado de um lugar para o outro, ou na sua bicicleta especialmente adaptada para ele. Fazia muito tempo que não o via, troquei de escolas várias vezes, novos alunos, novas funções e me culpo por não ter lembrado dele mais vezes.
Uma vez o encontrei nas olimpíadas das escolas municipais. Na época me contou que já estava cursando o primeiro ano do segundo grau e que nunca esquecera minhas aulas de artes, pois eram as mais divertidas e onde ele podia viajar e conhecer os artistas, lembrou que muitos artistas que eu mostrava tinham defeitos como ele. Abri o bilhete.
“Querida professora Marli
Estou indo para minha última cirurgia, o médico foi bem sincero e disse que talvez não dê certo. Não tem mais lugar, nem espaço para o meu coração dentro desse corpo pequeno e inútil. Como não sei se vou voltar, resolvi dar minhas coisas que gosto, para pessoas que gosto, esse é o seu presente, por tudo que fez por mim. Chico.”
As lágrimas não paravam de escorrer pelo meu rosto, peguei a chave do carro e sai a procura daquela senhora, lembrei de relance tê-la visto em uma reunião com pais e professores. Virei as quadras, revirei novamente, não a encontrava.
Fui até a vila da escola, passei devagarzinho por todas as ruas em que supunha ele estivesse morando, quando ia desistir vi a senhora entrar numa das casas de uma rua sem saída. Apressei-me, estacionei e bati palmas.
— Senhora professora porque veio até aqui?
— Queria ver o Chico, me despedir, o bilhete dizia que vai fazer nova cirurgia.
— Já foi professora, foi há cinco anos e o chico não resistiu, foi difícil encontrar todas pessoas que ele pediu para entregar as coisas dele e eu preciso trabalhar.
Chocada, caminhei em direção do carro. Como um robô, dirigi até em casa, fui tomar um banho e chorar debaixo da água quente.
O presente chegou com cinco anos de atraso, o pequeno Chico não suportara carregar um coração tão grande. Literalmente grande e cheio de amor.