As pérolas negras

AS PÉROLAS NEGRAS

Essa história eu a ouvi de um velho pescador sentado nas margens da Lagoa dos Patos.
Encontrei-o ali, sozinho, com uma simples vara de pesca tentando pegar um peixe, de qualquer tamanho, para o seu jantar. Já estava anoitecendo e a lua surgia no horizonte, por sobre as águas com um esplendor que fazia arrepiar a pele por baixo do casaco que me abrigava do vento. O velho pescador falou pausadamente:
— É noite das pérolas negras.
— Pérolas negras? — Indaguei curioso.
— Quando a lua cheia vem surgindo com esse esplendor, é noite das pérolas negras — seguiu falando. Parecia estar se divertindo com o meu olhar curioso.
— Essa história aconteceu pra mais de cinquenta anos moço, é bonita e se tiver vontade e tempo, como eu esperando o peixe, posso lhe contar.
Sem esperar pela minha resposta, que certamente seria afirmativa, foi falando novamente, com uma voz que me atraia pela simplicidade e harmonia, sem pressa, sem a angustia de todo contador de histórias, mas sempre curioso com a minha reação, continuou:
Morava aqui pertinho Taine, filha de um pescador, linda moça, cabelos longos, tão pretos que às vezes refletiam cores azuladas, os olhos, também pretos, feitos duas pérolas negras, que Deus provavelmente criou observando a natureza, a pele com suave cor de mel escuro, puro. Perfumada como uma rosa caminhava pela beira da água todas as manhãs, quando corria os olhos por sobre essa imensidão.
Como toda mulher-menina aprendia com a mãe as lidas da casa, mas não gostava não. Queria acompanhar o pai na pesca, seguir de barco sobre as águas que cintilavam e refletiam em seu coração reflexos como o dorso do barco cortando a água mansamente ou como a espuma que se forma no balaço em dia de vento forte.
Um barco ao sol nascente saindo para pescar parecia, para ela, um desses ninhos escondidos nas árvores que o vento lança às águas frias, e que as ondas levam em suas costas úmida para sempre seguir mais longe, para se perder no horizonte, conhecer o desconhecido, ir sempre mais além.
Parecia que o velho homem tinha vivido aquela história, pois por um segundo seu olhar se perdeu ao longe, antes de continuar a contar com a mesma calma e com as mesmas palavras intrigantes.
Olhou para sua linha, deu um pequeno puxão e seguiu falando.
Mas o pai não queria. Falava que mulher devia lavar roupa, limpar a casa, cozinhar, fazer remendos, coisas finas. Conduzir um barco, lançar rede, iscar espinhel, concertar a tarrafa, conhecer o segredo das águas, essas eram coisas de homens, ela tinha que se acostumar.
Mas aquela menina, só fazia enfurecer-se. Queria mesmo era romper as correntes que a prendiam, pois não havia coisa que pesasse tanto para ela do que fazer sempre a mesma coisa. Gostava de ver a lua na água a se mirar, ver chegar o pai com o barco carregado de camarão ou peixe. Naquele tempo, dava tanto para a gente se fartar. Ficava feliz quando, num gesto de agrado, o pai a convidava para ir junto numa volta, mas pequena sempre perto da margem.
Ela pulava logo na proa, ficava dentro do barco como se dele não fosse saltar nunca mais. Fixava os olhos no leme com pensamentos, desejos, fé, esperança de poder toca-lo e seguir em frente, mais longe, desejo de viver. Com os olhos brilhando, absorvia tudo o que podia do manejo, dos truques, da segurança do pai. Na água as cores reluzentes saindo da imensidão, sua sombra refletida como a vela mestra do barco que se dobrava ao comando do leme nas mãos do seu pai.
E a água símbolo da pureza, da fertilidade, da energia, da virtude, da sabedoria da natureza parecia compartilhar com ela a beleza divina, preciosa, especial. Já disse um poeta que a água é fonte de vida sublime e fundamental. Para ela estrela guia da vida, paixão incontida nos olhos negros, pérolas negras cheias da ânsia de se libertar.
Na inconsciência do seu desejo não via que o destino lhe pregava uma sentença, um amor assim pelas águas, tinha raízes fundas, tinha sofrimento, tinha beleza. Como que hipnotizada seguia a vida, sempre com aquele sentimento pela lagoa e pela vida.
Depois do serviço da casa corria faceira pela areia, brincava com os pés na água, tecia barcos com juncos que tirava da beira da lagoa. Sempre que via um barco ancorado seus olhos pousavam de mansinho, pensava ela ou pensava o barco, ninguém sabe bem até agora. O barco virava, como que pensativo, hora para cá, depois virava, como que pensativo, para lá, nunca se soube se era a correnteza da água ou se era o vento que lhe mudava a posição, mas para ela parecia um chamado, uma ilusão, contraposta ao céu azul que participava como que incentivando toda aquela paixão.
Foi em uma dessas noites sossegadas em que a lua aponta clara, noite meio morna e meio fria, que ela abriu a janela do quarto. A lua batia nos juncos e os prateava, o barco parado a espera dela. Olhava a lua e as estrelas que iam surgindo, afastou um pouco mais a cortina na janela. Ouvia-se um gemido, como um pranto, não se sabia se era do barco ou se dela.
Em silêncio saltou para fora e ansiosa caminhou até a areia, entrou na água, entrou no barco, deixou com calma se abrir a vela. No espaço mudo, nem uma aragem, tudo silêncio, tudo calma. Nenhum rumor, só o pranto escorrendo dos olhos negros dela.
No silêncio como mágica, o vento surgiu e soltou-se por entre os cabelos cheios de aroma e do barco, inflou a vela. Como uma voz secreta a sibilar por entre os juncos cor de prata, o barco e ela partiram e o vento secando as lágrimas no olhar dela. O barco tangendo a água seguiu reto, seguiu em curvas ao comando das mãos daquela mulher-menina e muito bela.
Como um encantamento, seguiam juntos vagando sob o luar, foram se afastando, ela não viu a distância, e seguiu, seguiu sem parar. Cada vez mais além, como sonhara, como pedira. Cada vez mais além.
Soprou o vento mais forte, cada vez mais forte, escureceu o firmamento e o barco sumiu no vasto horizonte.
Naquela noite aconteceu uma tormenta forte, daquelas que enrola todas redes, traz para a beira todas coisas escondidas na água por muito tempo, daquelas tormentas que as vezes aparecem até dentro do coração da gente.
Quando amanheceu, primeiro o pai deu falta do barco, depois a mãe deu falta dela.
Parentes, amigos, vizinhos todos procuraram, dentro e fora da água. Queriam alguma coisa que pudesse dar notícias do desaparecimento do barco e da menina. Foi muito estranho, pois ninguém achou nada, deu para estarrecer o pensamento daquela gente, um menino eu era.
Houve até histórias que talvez fossem exageradas, para assustar ou deslumbrar as crianças, mas a verdade é que nem um pedacinho do barco e nenhum dela jamais retornaram ou foram vistos.
Por isso, sempre que há lua cheia, os barcos da lagoa refletem na sua sombra olhos negros, parecendo duas pérolas negras a brilhar, como se fossem os dela.
Scplascht! Foi o barulho que fez na água — levei um susto, pulei do lugar.

O homem velho olhou sorridente e disse calmamente: — Peguei o meu jantar, a tempo de lhe contar a história, estou indo moço, aprecie sua pesca e o luar.
Meio sem jeito, pelo susto, agradeci e ele foi indo, perdeu-se na curva da rua e eu fiquei a olhar. Olhei para as águas, olhei para a lua, me pareceu esfriar ainda um pouquinho mais e aí eu vi surgindo no horizonte um barco, parecia deslizar. Pensei na sombra, quis que chegasse mais perto, queria confirmar a história do velho, queria ver as duas pérolas negras refletidas na água sob o luar.

Verena Rogowski Becker
12/12/2020

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